
Os instrumentos contratuais precisam retratar a verdade sobre a negociação. No entanto, enquanto acompanhava análises de venda de imóveis, comumente notava que os institutos da compra e venda e da cessão de direitos de imóveis eram confundidos no momento de elaborar o contrato, demonstrando claramente a dificuldade de muitas pessoas em diferenciá-los.
Por isso, decidi escrever esse artigo a fim de esclarecer a diferença entre esses dois institutos, explicando, de fato, o que é contrato de compra e venda de imóveis e o que é contrato de cessão de direitos sobre imóvel, instrumentos tão corriqueiros em nosso dia a dia, além de te ajudar, caso seja profissional da área, a identificar qual deles elaborar em cada caso. Vamos lá?
CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
Inicialmente, é importante lembrarmos que não é este o instrumento capaz de efetivamente transferir a propriedade do imóvel ao comprador.
Para que haja a transferência da propriedade imobiliária, devemos seguir o que dispõe o artigo 108 do Código Civil, o qual determina que seja lavrada uma Escritura Pública de Compra e Venda de Imóveis, e o posterior registro dessa escritura na matrícula do imóvel negociado, junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente. Para entender a diferença entre contrato, escritura pública e matrícula, clique aqui.
O contrato de compra e venda de imóvel serve para que toda a negociação seja expressa e organizada, assinada pelas partes, gerando a partir dela um direito obrigacional, ficando determinado questões como:
Qualificação completa das partes;
Descrição do imóvel e suas particularidades;
Valor da negociação e forma de pagamento.
A questão central que diferencia o contrato de compra e venda do contrato de cessão de direitos está em quem está negociando o imóvel, ou seja, no vendedor.
Aqui, o vendedor precisa ser o PROPRIETÁRIO do imóvel.
Quando falamos “proprietário”, precisamos nos atentar ao artigo 1.245 e seu parágrafo primeiro, do Código Civil, em que assim disciplina:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
Ou seja, proprietário é aquele que consta na certidão de inteiro teor do imóvel (matrícula), e a transferência da propriedade somente se dá após o devido registro da escritura de venda e compra.
Sei que você deve estar pensando que isso seja óbvio demais, não é mesmo? Mas, calma! Vamos agora falar sobre o contrato de cessão de direitos e você compreenderá o porquê de reforçarmos que o vendedor precisa ser o proprietário.
CONTRATO DE CESSÃO DE DIREITOS DE IMÓVEIS
Aqui, diferente do explicado acima, não falamos de proprietário ou vendedor, e sim de um CEDENTE, uma pessoa que não cumpre os requisitos do artigo 1.245 do Código Civil, conforme transcrito acima, não dando a publicidade necessária que somente o registro pode alcançar.
Explico: provavelmente, a pessoa que pretende "vender" o imóvel, por alguma razão, não registrou a propriedade em seu nome.
É bastante comum as pessoas não regularizarem a sua situação perante o Registro de Imóveis por deixarem de levar a escritura à registro; ou deixarem de efetivar o inventário, por exemplo, e, ainda, nos casos de cessão de direitos sobre imóvel financiado, em que as pessoas que não conseguem arcar com o financiamento e acabam transferindo seus direitos e obrigações para terceiro.
Sendo assim, não sendo o proprietário do imóvel, caberá à pessoa que pretende negociá-lo, possuindo muito provavelmente somente a posse sobre ele, apenas ceder seus direitos possessórios a terceiro. Seria, basicamente, uma cessão de direitos sobre imóvel irregular, haja vista que o cedente não é, de fato, o proprietário do imóvel.
Para ajudá-los a compreender melhor os conceitos, vamos nos utilizar de exemplos.
Vamos imaginar que Luiz Inácio comprou um imóvel de Jair Messias. Jair efetivamente consta como proprietário do imóvel na certidão de matrícula. Assim, para dar início à negociação, iremos elaborar um contrato de compra e venda, ou melhor, compromisso de compra e venda, tendo em vista que este não é definitivo por si só.
Agora, imagine que Luiz, após a assinatura do contrato, cumprindo com suas obrigações e posterior lavratura da escritura de venda e compra, deixou de levá-la a registro na matrícula do imóvel. Após alguns anos, pretende ele vender o imóvel a José.
José, muito atento e assistido por um advogado, percebe que na certidão de inteiro teor do imóvel ainda consta como proprietário uma pessoa chamada Jair Messias, entendendo que não se trata de uma simples compra e venda.
Neste caso, o instrumento agora a ser utilizado deverá ser o de cessão de direitos possessórios, pois é somente isso que o Luiz Inácio tem: direitos possessórios sobre o imóvel, e o que ele irá “vender” são esses direitos, ou seja, ele estará cedendo seus direitos possessórios ao José mediante contraprestação.
Conseguiu entender a diferença entre esses dois instrumentos?
Antes de finalizar, acredito ser de extrema importância pontuarmos algumas questões em relação a ausência de registro da compra do imóvel de forma imediata, o que torna o negócio altamente arriscado.
Perceba, quando nos deparamos com negociações neste sentido, precisamos nos preparar para os seguintes cenários:
Vindo falecer o nosso personagem Jair Messias, o imóvel negociado faria parte do seu acervo patrimonial e poderia entrar no inventário, dificultando a regularização posteriormente;
O Luiz Inácio poderia perder totalmente o contato com o Jair e, sem assinatura dele no contrato, ou qualquer alteração posterior à lavratura da escritura pública, poderia impedir o registro e a consequente transferência de propriedade;
E o pior: imagine que Jair seja um empresário condenado em uma ação trabalhista e obrigado, por sentença judicial, a pagar uma alta quantia. Caso ele não tenha qualquer outro bem imóvel ou valores em contas bancárias suficientes para cumprir com sua obrigação, o imóvel vendido a Luiz, que ainda consta em seu nome, poderá ser penhorado!
De igual forma, as questões acima também podem ser aplicadas aos casos de cessão de direitos hereditários, no qual a posse adquirida advém de herança. Ou seja, os herdeiros somente serão proprietários dos bens herdados, de fato, após o registro do inventário nas respectivas matrículas dos imóveis.
Compreender a situação fática das negociações é imprescindível, sobretudo quando falamos de transação imobiliária, pois são hipóteses recorrentes e que, na maioria das vezes, acarreta enormes prejuízos financeiros às partes que não se atentam a importância de uma análise de risco aprofundada das documentações pertinentes ao negócio, até mesmo a perda do bem, o que somente pode ser feito por um profissional adaptado a essas negociações.
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Este artigo foi escrito e publicado pela advogada Tatiane Motta, especialista na análise de risco nas transações imobiliárias, contratos de compra e venda e locação de imóveis. Caso tenha restado alguma dúvida, ou queira conversar em relação ao assunto aqui tratado, fique à vontade para entrar em contato pelo e-mail: contato@tatianemotta.com.br ou através do perfil do Instagram: @tatianefmotta.
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